Deixem-me em paz


Vamos lá ver se nos entendemos: eu já não sou o que fui. Um rapaz assustado, calado: Mesmo que pareça. Não sou o que fui. Não devo nada a ninguém, excepto 545 euros ao Gil de Corroios, duns negócios Tirando isso e a prestação do carro, tudo legal, mais nada.

Tenho momentos em que o medo me tolda a razão por segundos, mas não deixo de ser o homem em que me transformei. O medo é como o sistema dos telemóveis que reconhece um sistema semelhante a menos de 50 metros. O chip do medo encontra-se instalado numa circunvolução cerebral, inativo, a maior parte do tempo. No momento seguinte subimos a ladeira que acede a casa, passamos por uma janela aberta da qual emana o odor da sopa de couves que a nossa mãe cozinhava no dia em caímos ao poço do vizinho, há 40 anos, talvez mais, e estamos de novo no poço. Acreditamos que não voltaremos a sair, porque ninguém nos descobrirá. Gritamos, tirem-me daqui, e não nos ocorre que estamos apenas a subir a ladeira de regresso a casa. O chip do medo ativou-se. É preciso pensar, já não és uma criança, o poço já não existe nem esse lugar nem esse vizinho. Isso acabou. Tu já não és o mesmo. Acabou. E lentamente regressamos a nós. Já não somos o que fomos.

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