Voltei a chamar Deus para um rendez-vous

Como sabes, Senhor, há um texto das tuas escrituras que costuma ler-se nos funerais...
Há um tempo para viver e há um tempo para morrer; há um tempo para chorar e há um tempo para sorrir...
Esse, senhor.
Diz, então.
Senhor, encontras-me plena no tempo para viver; tenho estado nele há muitos anos, e já chorei o que se pode chorar; chorei até à inconsciência, que é um esvaziamento do eu.
Não choraste tudo. Tudo não.
Não, tudo não, mas chorei longamente e com abrangência. O tudo seria um martírio que creio não teres guardado para mim, mas para o teu filho. E tenho honrado a sua herança ideológica...
Não totalmente...
Bem, não sou capaz de oferecer sempre a outra face, mas já o fiz. Trouxe comigo muita indisciplina, mas empenho-me seriamente naquilo que penso e faço, e controlo os piores instintos, mesmo quando preciso deixá-los longamente remolhados em vinagre, para amolecerem, e eu chegar a compreender que eram duros, talvez injustos.
Não és diferente de ninguém.
Eu sei.
Diz-me para que me chamaste. Tenho pouco tempo para te dedicar. O mundo está cheio de almas que não têm a tua sorte.
Senhor, estou viva e já chorei, portanto, se há um tempo para rir, quero-o. É justo que receba a recompensa após um castigo tão longo.
Criança, não fui eu que escrevi o texto que ouves ler nos funerais, e não costumo delegar poderes. Não creias em tudo o que lês ou ouves ler, sobretudo se te disserem que é a minha palavra. Há um tempo para ti, criança. É um tempo que se funde no não-tempo, que não tem ano nem dia, e chorarás enquanto for preciso que chores. Não posso dar-te o que me pedes, isso, o riso que procuras. Não posso, porque embora te acompanhe, e possas requerer audiência ou apanhar-me no corredor e chamar-me informalmente, não possuo poder sobre ti. Há um tempo para chorar, isso é certo, e toda a tua existência pode ser-lhe dedicada, porque a vida é um espaço para o choro, e tu sabes. Pensa nisto, criança: o teu castigo é muito leve. Outros, que me chamam, rir-se-ão do teu castigo. Mas podes rir de vez em quando. Aos bochechos. Aproveita isso.
Não, esse riso não! Quero o riso de quem parou de chorar, de quem acabou esse tempo, de quem não voltará atrás nunca mais, não olhará para as cidades perdidas, e terá o poder de esquecê-las pa-ra-seeeem-pre!
Oh, tu queres demais!
Quero o que é devido, o que é justo, o que é terreno. Quero rir.
Escuta, criança, hoje é sexta, e não calculas os problemas que me aparecem de sexta a domingo, portanto tenho mesmo muita pressa e devo ser conciso; terás de me compreender: se queres, procura. Tu não és pobre de espírito, logo, não posso absolver-te; deves continuar a agir como agiste desde menina: se queres, procura.
Só me dizes isso?!
Não há mesmo mais nada para te dizer. Não há no universo segredos guardados para produzir riso. E eu sou apenas Deus, não faço milagres.

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