Modo de sobrevivência
Há um capítulo, no Caderno de Memórias Coloniais, no qual eu e uma amiga alfabetizamos os filhos dos negros que saquearam a casa onde esta vivia, no Infulene, após terem torturado e assassinado, de caminho, com crueza, imbuídos do que de mais eufórico e banal existe na crueldade, os vizinhos brancos daquela zona, bem como tudo o que fosse branco e respirasse.
E perguntam-me, o que sentiste ao alfabetizar esses negrinhos? Como foste capaz? Não tinhas medo?
Respondo, não, não tínhamos. Embora fôssemos ainda adolescentes, distinguíamos entre filhos e pais. Temíamos os pais, irmãos e primos assassinos, pela ameaça que constituíam para a nossa segurança e integridade sexual, mas as crianças encontravam-se absolvidas dos seus atos, portanto o nosso trabalho de alfabetização era autêntico, e não só os ensinávamos a ler e escrever como lhes limpávamos a cara e os assoávamos. Por outro lado, ambas sabíamos, sem o ter jamais verbalizado, que o nosso trabalho voluntário garantia, à nossa família, salvo-conduto junto do comité. Os comités de bairro tinham poder de vida e de morte. Tudo se decidia ali, e a informação chegada ao comité influenciava o futuro de cada branco.
Enquanto as meninas brancas fossem professoras, e aceites, cumpriam uma função, mostravam solidariedade, humildade, e isso podia, literalmente, salvar-nos pele, sobretudo a da nossa família. De igual forma, os nossos pais levavam-nos até à casa saqueada e queimada na qual se desenrolava a nossa atividade, sem que a funcionalidade da tarefa, num quadro de estratégia de sobrevivência, fosse admitida. Quando entramos em modo de sobrevivência há palavras que não precisam de ser ditas. Conhecedores da realidade, todos sabemos o que se joga em cada decisão. Há proposta e decisão, que deve ser rápida, porque a sobrevivência não tem paciência para esperar.
Perguntam-me, ainda, e insistem muito nisto, o que sentias? Revelo muita dificuldade em responder a esta questão. Não sentia. Em modo de sobrevivência não se sente, age-se. Faz-se. Anda-se. Tudo é pensado no momento, em função da situação. Não sentia, pensava. Para conseguir x tenho de fazer y, padrão que, aliás, segui toda a vida.
Insistem. Dá-me um sentimento. Não é possível saberes que estás a alfabetizar os filhos dos assassinos que violaram e mataram as tuas conhecidas e amigas e não teres sentimentos acerca disso.
Penso sobre sentimentos que pudessem ter-me dominado e só me ocorre um, que igualmente se transformou num padrão de vida para o resto do meu tempo: a esperança. Sentia esperança. Sentia que o perigo e a banalidade do mal eram superáveis. Sentia que vivia numa conjuntura que ultrapassaria, e que havia algures um futuro para mim. Mantive sempre esta certeza: há um futuro à nossa espera, não nos vai acontecer nada, vamos safar-nos. Sentia isto, mas não sei explicar porquê.
Aprendi também a sorrir com o medo. Conheço o sentimento de medo controlado, disfarçado de afabilidade, cumplicidade. Não interessa a quantidade de medo que se sinta, desde que não se torne percetível para o predador. Sorrir com medo não corresponde apenas a uma ação; há um sentimento associável, carregado de adrenalina.
Nos EUA, a professora Isabel Ferreira Gould, no contexto de uma das suas aulas, perguntou-me se eu me considerava uma sobrevivente. Respondi que sim, se bem me lembro. Tudo em mim cumpre a função da sobrevivência. É uma escolha dura, com custos emocionais elevados, contudo nunca me pareceu ser possível viver de outra forma, portanto poupem-me às teorias sobre o antidepressivo com caráter permanente não passar de um placebo ou a insónia crónica poder vencer-se sem Xanax. Não há escolhas sem custos, e eu pago as minhas.