Sr. Simões desmonta Isabela

Sábado de manhã. Mercado situado algures na Margem Sul, extremamente multirracial.
Quando Chico o encontra, o sr. Simões encontra-se debruçado sobre a banca da d. Irene, escolhendo cenouras para o creme. Já mandou pesar courgete e alho francês, arrumados num saco de plástico, ao lado.
Chico - Sr. Simões, então o Brasil?
Sr. Simões - Oh, rapaz, dê cá um abraço. Já não o via desde quando?
Chico - Desde o Verão. Foi para o paraíso e deixou-nos.
Sr. Simões - O paraíso, diz bem, Chico! Lá é que você arranjava uma rapariga dessas de que gosta. Há para todos os gostos, homem!
Francisco ri-se.
C. - Sr. Simões, a minha coluna está pior que uma estrada no interior do Kosovo...
Sr. S. - Ah, não diga isso. Não se faça de menos.
Francisco mudando de conversa, embaraçado.
C. - Estranho vê-lo na praça, sr. Simões. Costumo encontrar a sua esposa.
Sr. S. - (esboçando uma careta) - Desde que cheguei do Brasil está com uma crise de fígado que não se lhe pode dirigir a palavra. Uma bílis! Há uns tempos, sempre que lhe falo em Brasil, fica assim. Até parece que não tem tudo em casa. Olhe que não lhe falto com nada!
C. - Encontrei-a pelas Almadas a tomar chá com a Isabela, há umas semanas.
Sr. S. - O mal é esse: a Isabela não é boa companhia!
C. - A Isabela não é boa companhia?!
Sr. S. - Para a minha senhora, não. Para si, essas intelectualices de que falam, vá. A Isabela tem ideias muito modernas, percebe?! Muito cheia de opiniões, eu isto, nós aquilo. A minha mulher é doutra geração e a abordagem dá-lhe a volta à cabeça. Quando as sei ao telefone, tremo. As maluquices da Isabela são sempre de evitar.
C. - Mas agora anda sossegadinha!
Sr. S. - Pensa você. Aquilo está sempre a ferver. Você não lê o que ela mete no Facebook?! Estou sempre receando a próxima loucura a sair do forno.
C. - Vamos lá ver: é uma loucura literária, controlada.
Sr. S. - Uma loucura literária?! A Agustina tem loucuras literárias?!
C. - Não é a mesma estética.
Sr. S. - A Lídia Jorge tem loucuras controladas?!
C. - Não é o mesmo estilo, sr. Simões.
Sr. S. - Maluqueira...
C. - São uma metacoisas. A Isabela vive muito à artista, confundindo arte e quotidiano... Eu acredito nela, sr. Simões.
Sr. S. - Oh, Chico, você tem piada! Gostava era que me dissesse como se promove uma escritora que não se dá ao respeito!
C. - Eu não iria tão longe, Sr. Simões! São artistas, o senhor sabe bem... dá-se um desconto.
Sr. S. - É ridículo, meu amigo. Aquilo é ridículo, ridículo, rídículo.
C. - Para uns...
Sr. S. - Para todos!
C. - Há quem lhe ache graça!
Sr. S. - Você parece estar do lado dela.
C. - Conheço-a há muito tempo, sr. Simões. É boa rapariga. Tem o seu feitizinho, mas sei o que tem sido a sua vida.
O Simões franze a testa.
Sr. S. - Não me diga que você é do tempo do Anticristo?!
C. - Isso.
O Simões estala os dedos duas vezes e abana a cabeça outras tantas.
Sr. S. - Esse gajo teve uma sorte - e um azar! Sabe, Chico, eu, a Isabela, tenho cá a minha teoria...
Francisco não responde.
- ... aquilo é material... (hesita) Aquilo é material que nos vem à mão uma vez na vida.
Francisco treme.
- ... e ou se apanha... e é sorte, ou se larga... e nesse caso... sorte é!
Simões ri-se sozinho.
- Com a Isabela dá no mesmo, percebe?!. Tudo depende da quantidade de adrenalina que se está disposto a gastar. E no caso do Anticristo...
Simões não consegue parar de rir.
- ... o gajo acabou por ter sorte. Não tinha pedalada para um motor com aquela cilindrada. Quando fica sem travões, quem é que segura um bicho daqueles?! Você já a viu quando...
C. - Eu não vi nada! Nunca vi nada. Não sei de nada.
Sr. S. - Sorte a sua. É cada guinada!
C. - O sr. não a larga.
Sr. Simões - Sim, mas a Isabela é como trabalhar pro bono. Não leva aquilo a sério. A mulher devia ter-me entregue um romance em Julho.
C. - É a escola, Sr. Simões.
Sr. S. - Ela inventa desculpas: a escola, a mãe, as cadelas, uma cirurgia... Tem catálogo de desculpas.
C. - Agora arranjou um namorado.
Sr. S. - O canadiano?
C. - Sim.
Sr. S. - E você acredita nisso?
C. - Por que havia de duvidar?
Sr. S. - Oh, Chico, homem, acorde! A Isabela inventa tudo. A mulher não tem vida! Cria-a na literatura e consome-se nela. Uma solteirona diplomada daquele gabarito arranjava um canadiano em Nova Iorque, como nos quer vender?! Oh, senhor, nem um operador de call center que morasse ao Rato. Esqueça isso. É preguiçosa, é o que ela é!

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