Uma esperança, um se, um talvez



Olhei para trás e meti-me com a Morena, então, querida, vais com calor? Enquanto o dizia, revi mentalmente a Micas com o pescoço estendido para apanhar a brisa que entrava pela janela, sempre sentada, sempre atenta ao movimento na rua. Lembro-me de ter pensado, numa das últimas vezes em que andou comigo de carro, nem doente ela desiste, nem paralisada se conforma e deita. Lembro-me de me ter sentido feliz com a força, a vivacidade da Micas e de ter pensado, sem pensar, apenas uma certeza, a dona trata de ti, meu amor. Tudo isto no tempo que se leva a articular uma frase tão curta como "então, querida, vais com calor?". No segundo seguinte a realidade informou-me que a Micas já não existe, e no outro, ainda, equacionei para mim essa perda. Foi o pior segundo, aquele em que confrontei a imagem mental da Micas procurando a brisa que entrava pela janela do carro, e a consciência da sua ausência. A perda causada pela morte é um nunca mais. É uma dor diferente de todas, porque não nos resta uma esperança, um se, um talvez. O que a morte nos leva, sabemos que não voltaremos a encontrar no tempo da nossa vida.

Precisei, de novo, de trazer à memória os momentos bons da Micas, quando passeávamos pelo campo, quando se deitava no chão com a cabecinha sobre os meus pés, enquanto eu escrevia. Foi-me necessário pensar, foi feliz, sei-o muito bem, porque cuidei dela, estive presente, sei como vivemos; não morreu precocemente, viveu o que tinha de viver, e teve uma boa vida. E nisto há uma busca da minha isenção de culpa. Ela morreu. Eu não tive culpa. Eu fiz o que pude.

E pus-me a pensar na dificuldade que experimentamos perante a ideia de morte, sem a qual não haveria nascimento. Na carga negativa, na culpa com que a vivenciamos.

O Facebook está cheio de manifestações de pesar relativas à morte de Steve Jobs, ideólogo da Apple. Julgo que nenhum dos meus amigos tenha chegado a almoçar com ele, visitado em casa, o conhecesse intimamente. Contudo, as pessoas sentem a perda como própria. Era jovem. Não viveu nem realizou tudo o que estaria ao seu alcance caso lhe fosse oferecida mais vida.

Este ano a morte tem ceifado a eito pela seara da precocidade, e deixamo-nos ficar paralisados de um espanto medonho. Estou cansada, confesso: cancro no fígado, no pâncreas, nos pulmões, intestinos, cancro fulminante e metastizado a um ponto que se torna inútil investigar onde teve origem. As pessoas caem atingidas pela doença, aos montões, como cabelo doente, e isto amedronta-me. Agarro as mamas com as duas mãos e penso, tenho de ir fazer uma mamografia o mais depressa possível. Sinto tanto medo de morrer que não reconheço o desprendimento teórico com que defendo o destemor da morte, aceitando-a como parte de um binómio que inclui a vida. Não morremos, passamos, digo-me. Isto é tudo uma passagem. E julgo sossegar-me. Mas, o caraças se me sossego. Teoria.Tudo teoria. Alguém deveria ensinar-nos a morrer como se ensina a fazer reciclagem ou regras de três simples. Devíamos ter a disciplina na escola, com caráter obrigatório, logo a partir do 1ºciclo. Chamar-se-ia Viver e Morrer, e devia ter manual, material obrigatório, testes, trabalhos de casa, individuais, em pares e grupo.

Não sabemos viver nem morrer. Não aceitamos a vida própria nem alheia tal como não compreendemos a morte, esse futuro tão certo, provavelmente tão perfeito.

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