Cool e desinfetados

Vinha a ouvir rádio enquanto conduzia, e apanhei um programa no qual uma figura pública era convidada a passar discos, justificando as razões da sua escolha.

Escutei a voz de mulher jovem, grave, cava, bem colocada, pausada. Uma voz profissional, o que se confirmou poucos minutos depois, ao referir a sua carreira musical. Penso que fosse cantora solista ou numa banda. Não cheguei a sabê-lo com exatidão porque mudei de canal: irritei-me. Era aquilo a que chamo uma voz encaixilhada, feita para agradar a um grupo urbano, comprometido com uma cultura, uma estética e um chorrilho de clichés na moda, nos quais acreditam e que não pensam ultrapassar. Uma voz que não fala alto, que não muda de tom, não se irrita, não dá um grito, não sai da cama ensonada, enfim, que "sabe estar", escolhendo as músicas aceitáveis, que o meio aceita como cool, alternativas, diferentes.

O meio é tão establisment como o que não o é. Ninguém está aqui para pensar pela sua cabeça, de acordo com os seus valores. Ninguém corre o risco de ser o que é, sem almofadas. Nada de de desvios, de inovações não autenticadas. Não se correm riscos.

Quando ouço o discurso do meio fico com a impressão que já eram apreciadores de Lou Reed, Tom Waits e Diamanda Galla na creche, enquanto os outros meninos aprendiam o "atirei o pau ao gato". Quando me confronto com semelhantes manifestações de parecer, lembro-me sempre do Poema em Linha Reta, do Álvaro de Campos. Serei a única que enrolo os pés nos tapetes das etiquetas e tenho de suportar o piscar de olhos dos moços de hotel? Os outros não vão à casa de banho, não têm dores nos ovários nem infeções oftálmicas? O meio nasceu cool e desinfetado?!

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