A ordem natural da respiração
Cada um tem os seus mortos, porque em tudo somos iguais.
Os meus mortos morreram sós. Ninguém lhes amparou a cabeça, segurou a mão, escutou o seu último suspiro, e não pensem que connosco será diferente. Como poderia eu morrer com testemunhas? Vão-se embora, deixem-me em paz, isto é privado. E ao mesmo tempo culpo-me por não ter estado junto deles. Não lhes ter dito, está tudo bem, está tudo bem, querido, eu estou aqui.
A última frase ouvida ao meu pai foi "isto hoje está mau". Quando foram vê-lo, duas horas depois, tinha-se ido embora e deixado o corpo. Telefonaram-me e não acreditei. Peguei no carro, conduzi cem quilómetros e disse, "deixem-me vê-lo". Era noite e estava num quarto com outras pessoas ao lado. Dormiam. O meu pai estava coberto com um lençol e tinha a cabeça tapada. Descobri-o, com uma réstia de esperança. As pessoas enganam-se. Toquei-lhe na testa, na cara. Estava morto. Não é preciso ser médico. O meu pai estava morto para esta vida e era justo. Não merecia continuar a viver nas condições em que o seu corpo o colocara. Não se enfia um gigante numa jaula, não se lhe atam as pernas e os braços. Matem-no. É mais digno. A morte não tem nada de mal. Ás vezes é preciso morrer para se poder voltar à vida. Eu pude fazê-lo, pude dar-lhe voz, esta outra vida através de mim.
Os meus mortos são o meu passado e o passado é tudo o que me resta. Não peço pão por Deus, porque já peço a Deus pão para os meus mortos, que morreram sós, sem um gesto meu, tal como eu morrerei sem um gesto vosso, por ser a ordem natural da respiração. Já dou a Deus todas as bolachas da minha despensa.
Os meus mortos são o meu passado e o passado é tudo o que me resta. Não peço pão por Deus, porque já peço a Deus pão para os meus mortos, que morreram sós, sem um gesto meu, tal como eu morrerei sem um gesto vosso, por ser a ordem natural da respiração. Já dou a Deus todas as bolachas da minha despensa.
Imagino que os meus mortos estejam todos juntos, que se conheçam e acompanhem. O meu pai anda sempre com a Micas atrás. Quando o Gabi morreu, recebeu-o lá em cima, "então, já?! Olhe que a minha filha vai sentir a sua falta." A Micas abanou a cauda ao Gabi, reconhecendo-o, e ele inclinou-se para festejá-la, "bonita, bonita". Construo uma narrativa para a morte. Quem fica, precisa de alguma razão, de uma certa lógica. Eu, que sou capricórnio, acho que deve ser isso.