Do zero pela enésima vez
Quando os meus pais me mandaram sozinha para Portugal, aos 13, fizeram-no com dor, mas porque era necessário. Eu era a única filha; queriam dar-me um futuro, garantir a minha segurança.
Moçambique era, após a independência, um território onde se vivia muito mal, em grande insegurança sob todos os pontos de vista. As escolas funcionavam, mas com poucos professores, a maior parte deles minimamente habilitados. Era importante, para os meus pais e também para mim, receber uma boa educação, ir para a Universidade. Nunca fomos ricos. Viviamos do trabalho, portanto era importante estudar para alcançar uma vida digna, completamente diferente da que levou o meu pai a emigrar para uma colónia.
Nenhum de nós poderia imaginar que Portugal chegaria a isto, considerando "isto" como similar ao caos que se viveu em África após o 25 de Abril. Era o "ninguém quer saber, ninguém respeita nada". O meu pai não poderia ter imaginado que aquilo a que Jorge Jardim chamava a "terra queimada", ou seja, Moçambique, de onde era preciso que eu saísse depressa, para meu bem, se transformasse em poucas décadas no lugar onde quero regressar para escapar ao incêndio de miséria, injustiça e hipocrisia que grassa na terra onde ele nasceu, e para onde me enviou para minha segurança.
Falhou tudo, pai. Estivemos separados para nada. Imaginamos que trilhavamos um caminho de esperança mas acabamos numa estrada sem saída. É só isto que quero dizer-te hoje: tudo aquilo em que acreditaste de uma forma, e eu de outra, já não existe. A tua terra acabou. Vamos ter de regressar ao lugar que amávamos, mesmo que nos chamem estrangeiros. Agora somo-lo mesmo. Resta-nos a nossa língua. Ainda falamos português. Podemos recomeçar do zero pela enésima vez.