Purgatório



O meu pai e eu. O  meu pai, a minha mãe e eu. Eu e a Morena. O meu pai, eu e a Morena. O meu pai, a minha mãe, eu e a Morena. Eu, a Morena, a Micas e a Lili. Todos a passear num Opel Corsa verde-musgo. O meu pai à frente, ao meu lado. Sorri sempre, com a boca ao lado. A cadeira de rodas na bagageira, pesadíssima, marcando-me de nódoas negras os braços e as pernas. Só eu a sei encaixar e retirar, mais ninguém. Há um truque que aprendi. Eu a refilar com a minha mãe por algum motivo que não mereceria tanta raiva, mas que nessa altura tem. Como se fosse o início do fim do mundo. Mulher de granito impossível de torcer. As cadelas como lenitivo que dá trabalho, mas sem o qual tudo o resto seria irrealizável. As cadelas que abraço depois de carregar o meu pai, depois de refilar com a minha mãe. As cadelas com o focinho húmido e cheiro a cão e muitos pelos. As cadelas macias, cuja pelagem identifico tateando, que chamo nos sonhos. Eles, todos, juntos, à vez, como uma enorme pedra que nunca se moveu dentro do meu purgatório.

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