Uma professora medíocre
Estávamos a falar sobre Fernando Pessoa e disse aos miúdos que o poeta ter-se tornado a sensibilidade que conhecemos seria inevitável, porque falávamos de um garoto órfão de pai aos seis anos, amputado da sua terra natal e levado para um país com clima, língua e cultura estranhas, um padrasto que o trataria com distância, e a quem a mãe, viúva, devia o desposado culto da generosidade, que lhe gerou mais quatro meios-irmãos. Acrescentei que Fernando Pessoa sabia o que era perder o pai, a mãe, a terra, a língua materna, as referências, e que poderíamos, se quiséssemos, considerá-lo um traumatizado das circunstâncias, portanto, a literatura, a arte em geral seria inevitável. Estava o caminho aberto. Ficaram a olhar-me baralhados. Não sei se me perceberam.
De repente lembrei-me que a Paula tinha perdido o pai aos cinco e ido para França com a mãe alternadeira, onde desaprendeu o português; que o Rafa tinha vindo sozinho de Angola e vivia com uns tios traficantes de droga; que o Samuel vivia com a mãe e a avó porque o pai desapareceu antes de ele nascer, e depois soube-se que morrera de overdose; que a Renata fora criada pelos avós e não sabe dos pais, sendo que o único amigo que teve morreu ao cair a um poço na Sobreda e que a Micaela vive só com o pai porque a mãe emigrou para Espanha, onde arranjou um emprego que ela não sabe dizer... E foi quando achei melhor rematar que obviamente não era isso o que explicava a genialidade de Pessoa, porque traumatizados como ele havia muitos. E passei ao talento que, como o caráter, embora alguns digam que não, nasce conosco.