Vai
Não tenho medo.
Nesse sábado, acordei e disse para mim que tinha já vivido muito e que esse Homem estava no meio da minha vida como “no meio do caminho tinha uma pedra”.
Eu tinha sido teimosa e volátil. Errado, errado. Rondado.
Vigiado. Cercado. Injuriado. Tinha cometido todos os erros do sobrevivente nato, sobretudo os erros certos, os que se fazem porque não se desiste até ao último sopro.
Eu tinha vivido mais
do que ele, ou pelo menos diferentemente. As minhas prisões tinham sido
outras. E o Homem era a minha pedra no meio do caminho, mas
chegava. Eu tinha o resto da vida para viver. Desistia. Era eu quem
desistia.
Sabia onde morava o Homem, portanto fui encontra-lo no sábado de
manhã. Ele saía para comprar fruta, pão, o jornal, e eu conhecia as suas ruas.
Era fácil apanhá-lo. Só querer. Foi o que fiz.
Encostei-me ao muro do
jardim, junto ao mar. Ele havia de passar no caminho de volta a casa. Era o
final da manhã. Do lado de dentro, as roseiras trepavam o muro rendado de tijoleira vazada, e tinham-se cosido ao sujo da parede. Eu escolhi
esse local. Os espinhos picavam-me as costas, e a picada acordava-me enquanto o
esperava.
O Homem apareceu ao longe. Eu vejo mal, mas era ele. A
altura. A passada. Mesmo que não distinguisse ainda os traços do seu rosto. Que
me interessavam os traços do seu rosto?! Nós já não éramos corpo, embora
ainda precisássemos dele para o final. Ele trazia os olhos postos em mim. Ele
trazia na mão o jornal que acabava de comprar. Eu, nada, só eu, para a
despedida. Eu era muito, portanto mantinha as mãos desocupadas, e quando nos
aproximamos abri os braços e abracei-o. Sabia que se não o abraçasse ele
passaria por mim sem um gesto. Mas nesse dia foi diferente. Eu ia abrir os
braços e ele ia deixar-se abraçar, e foi como eu quis. O Homem deixou-se
enlaçar, e foi só isso, muito tempo, não sei quanto, porque o que era isso do
tempo?! Para nós?! Até rio. Abraçamo-nos muito, sem pensamento. Só. Era o abraço. Uma
prisão livre. O abraço forte, só. Presos nos braços, nos peitos um do outro,
escutando a respiração alheia e a própria, sentindo os corações baterem muito depressa,
depois acalmando-se ao longo do abraço agarrado. O tempo, que
interessa?! Parou. Não andou para trás nem para a frente. O tempo parou para
que fôssemos só um, pai, filho e espírito santo, mais nada. Éramos nada. Eu
chorei, porque choro sempre como uma pessoa de carne, uma coisa que se atira e se
desfaz, mas o meu choro não era alegria nem tristeza, mas o próprio abraço. O
meu choro era a visão da clara luz do que o nosso abraço unia. Através das minhas lágrimas senti apenas
o homem, não um deus nem o sensato cobarde. O meu Homem era pouca coisa, e
tinha maltratado a vida, rido pouco, mas era meu, e seja como for, ninguém sabe viver antes de começar. Ele tinha perdão. E eu. E no nosso abraço foi o que
realmente era. Pela primeira vez não temeu o meu corpo nem a minha loucura. Os
seus braços apertaram as minhas costas e ombros com a mesma força com que os
meus apertaram os seus. Não queríamos largar-nos, porque era o fim, era mesmo, acabava ali;
eu tinha-o determinado e ele sentiu. Nesse sábado, eu ia-me mesmo embora. Tinha
estabelecido a data na minha cabeça. Vinte oito de junho e pronto. Dava-o, a
partir daí, ao que tivesse de ser. Acabava, ponto final, e
não há burro mais teimoso do que este.
Durante o abraço, as roseiras do muro deixaram
cair sobre nós as pétalas maduras, lentas, aleatórias. Uma oferta de reis.
Uma a uma, iam tombando, claras, rasando as nossas cabeças, e deixando sobre o nosso
abraço um cheiro a morte doce. Vai, disse-lhe. Temos de ir, repeti. Acabou,
agora, vai, disse. Não esperes mais. Vai. Vai.
Não houve raiva nem dor nas minhas palavras. Tudo isso tinha
já passado pela máquina dos dias, que esmaga e tritura e destrói, mas a mim não.
Tinha-o ainda preso no abraço, e os nossos corpos nem lhe
faziam jus, pois nós éramos transcendentemente um do outro, sem corpo, há
séculos e séculos. Estava escrito assim. Não havia nada a fazer. Não tínhamos
escolhido. Não havia nada a fazer nesta vida, é preciso entender. Sabendo-o,
aceitei e deixei-o ir nesse sábado.
Largámo-nos, ele apanhou do chão o saco das compras, compôs a
t-shirt velha, e continuou para casa. Fiquei a vê-lo ir. Não se voltou. Ele
nunca se voltava, portanto eu não esperei esse seu gesto. Queria só ver o que restava, até ao
fim, porque era um vício.
Vais, porque te deixo ir. Vais, porque quero que vás. Vais,
porque alguém tem de ser capaz.
Pensei, contra mim, ele nunca cedeu, e de seguida, a meu favor,
ele também nunca largou. Portanto, cabia-me decidir. Vais.
Estávamos por nossa conta, finalmente. Sozinhos. Já não éramos
como uma pomba que acabou de nascer e ainda não sabe que as aves progenitoras a
vão alimentar, ensinar a voar e abandonar. Agora estávamos entregues a nós próprios,
e não havia mais ninguém que nos amparasse. Olhei-o, ainda. Os ombros, as
costas, na distância.
Caminhei até ao carro, que deixara mal estacionado rente à
muralha do mar, abri a porta, entrei, pousei, respirei fundo e arranquei.