Não posso mudar o mundo




Praceta Projetada à Avenida Luciano Cordeiro foi o nome do lugar, atrás da Pinheiro Chagas, para onde fomos viver após os distúrbios do 7 de Setembro na Matola. Era um pequeno prédio. incluído numa zona de traça nova, da responsabilidade do meu tio materno, construtor civil. Vivíamos no 1º andar e a casa era boa. 
O Bolinhas, que eu recolhera na Matola, à revelia de todas as tutelas, um amarelo tigrado. gordo, luzidio, costumava fugir pela varanda trás, saltando para ir às gatas, e voltava três dias depois, esfolado e partido. Foi também a essa varanda que a minha mãe me chamou um dia, tinha eu acabado de fazer onze anos, para me dizer que o fenómeno que havia transformado aquela bacia de água, detergente e cuecas num contentor de aguadilha sanguínea me havia de aparecer todos os meses, doravante. Não me disse até quando. Esperei 40 anos que a resposta se desse sem palavras. 
Do lado fronteiro, existia uma segunda varanda da onde se avistava toda a praceta, e na qual me sentava, à tarde, efabulando, nos meus entretimentos solitários de filha única que pensava muito e falava pouco. 
Eu não tinha uma voz, sequer. Era uma criança e, pior, uma menina. Esperava-se pouca ambição de uma mulher, questão que sempre me passou ao lado. Eu tinha planos.

Na varanda da frente, imaginava ser a rainha da praceta e, nesses momentos, na minha imaginação, tudo era perfeito. Eu governava com justiça e tinha o poder de mudar aquilo que eticamente considerava errado. Mudava o mundo. Mudava os outros. Cada habitante daquela praceta, cada carro entrado ou saído era o elemento de um guião que eu ia construindo e adaptando mentalmente.
Os dias na praceta foram importantes na medida em que indiciaram um padrão de comportamento que revelei ao longo dos anos, e que mais tarde atingiu o expoente quando preteri, à humilde docência, aquilo que poderia ter sido uma frutuosa carreira no jornalismo. Como jornalista não mudaria o mundo, mas como professora tenho a certeza que o mudei centenas de vezes, sem que os visados alguma vez o tenham percebido. Como professora, toquei em cordas certas, nos momentos certos, sem pudor ou medo, e lembro-me de sair de aulas com o peito cheio por ter feito o que estava certo e faria caminho. Uma boa professora é simultaneamente um anjo da guarda e uma bússola que permite reconhecimento e revelação. 
Mas nem sempre sou bem sucedida. Tenho tido os meus fracassos. Eu, que sou teimosa, já desisti e me amargurei, de maneira que nos últimos anos apercebi-me de uma mudança no meu pensamento: afinal não consigo mudar muito o mundo, pelo menos não da forma como o fantasiava na Praceta Projetada à Avenida Luciano Cordeiro! Não tenho esse poder. Não posso mudar o mundo, mas posso mudar-me a mim no que respeita à forma como estou no mundo. É possível que esta revelação seja afinal o meu caminho para mudar. O mundo. Disse isto hoje a alguém e é para pôr em prática.

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