Os papás não fodem
Cada mulher tem a sua obsessão.
Quando
vim para a casa decidi que o quarto da frente seria o dos papás. O quarto da
frente é o principal no lar, portanto, pertence aos mais altos na hierarquia
familiar. Talvez tenha sido eu que me coloquei sempre, à partida, numa posição
subalterna.
Quando,
de costume, afirmo que, ao chegarem de África, nenhum deles era capaz de me
olhar como adulta, talvez queira dizer que nunca fui capaz de ver-me como
adulta junto deles. Que não sabia ter, com eles, o poder de uma pessoa
crescida, ao seu lado, como igual. Não tive essa escola lenta de ir progredindo em companhia. Fui criança e depois mulher, e o que ficou pelo meio perdemos os
três. Saltámos dez anos no tempo e no espaço sem que as nossas mentes tivessem
conseguido ajustar-se a viver na ausência e depois na presença alterada. Como é
que se fazia para discordar dos papás? Para fazer valer a minha opinião? A história
não se compadece de emoções privadas, mas é a sua frieza que dá à nossa resistência
uma dimensão épica. Tudo se atravessa como se não estivéssemos sempre mortos e
vivos, no mesmo instante, lutando por adiar a transição.
A
mobília do quarto de casal dos papás era a da Matola, em umbila bem escura, a
que a mamã puxava o lustro com cera preta para a aproximar o mais possível das
madeiras exóticas que tinham muito valor. Cama com cabeceira e pés montados num
gradeamento de colunas, com mesas-de-cabeceira, cómoda, pechiché, banco, e
cadeira, estofados, em napa branca, linhas muito direitas, estilo Império.
No caixote veio também um guarda-fatos adquirido em Tete, que nunca fez parte da
mobília da Matola, casa na qual existiam armários embutidos na parede, o
que excluía a necessidade da peça. O guarda-fatos proveniente da fábrica de
Tete, apresentava design dos anos 70, com
um aileron ao alto, quebrado por um pináculo a meio, ponto a partir do qual o acrescento crescia, alargando a partir dali as suas asas retas. Foi das peças de
mobiliário mais feias que encontrei. Tentei dar a volta a essa herança, colocando-a
em vários quartos, em diferentes paredes. Imaginei-o pintado com uma patine romântica
em desgastado falso, mas nunca ficou bem em assoalhada alguma, onde quer que a
colocasse, e nem sequer na minha imaginação. Considero mau sinal a minha fantasia
não conseguir visualizar o que um objeto pode ser, ainda não sendo, ou não lhe
agradar o que vê.
Quando
os papás vieram de África deu-me jeito pensar que já não fodiam, embora eu
tivesse começado uns tempos antes.
Era sumarento, sem palavras certas nem regras. Era uma brincadeira de
animais, e não pode ser possível nem verdade que os nossos pais se entreguem a um gosto
que nos ensinaram a encarar como vergonha.
Não
somos capazes de ver os papás como pessoas iguais a nós, como penso que eles
não sejam capazes de nos ver como
pessoas que eles também já foram, antes de ser o que são. Somos continuações e prolongamentos
uns dos outros, que se escondem, se temem.
Portanto,
os meus pais não fodiam, mas a mamã dizia-me que havia a mulher ruiva do talho, com as calças verdes, mal jeitosa, que o cortejava. Ria-me e respondia-lhe que não
podia ser, não passaria de um convívio de vizinhos, e nada mais. Uma mulher entrada
na idade a cortejar o papá, que ideia mais ridícula. E o papá a cortejar
alguém, aos sessenta anos, gordo e estragado, honestamente, que ideia! Ria-me
e exclamava “que exagero”. Não poderia ser mais do que uma brincadeira, uma
troca de piropos. A mamã clamava que não, que o gerente do talho era putanheiro
e levava o papá para maus caminhos. Chamava-me ao quarto, abria gavetas
e mostrava-me comprimidos e elixires medicinais à base de pau de Cabinda e
ginseng que o papá tinha comprado na ervanária para ter mais força naquilo.
“Ainda
tem a mania destas coisas.”
“Oh,
mãe, não é isso!”
Ria-me,
envergonhada.
“É só uma vitamina para dar força. Deixa-o ter as suas alegrias.”
“Ele
é maluco, já sabes. Tem a mania que é novo. Sempre gostou destas brincadeiras parvas.”
A
minha mãe não tinha amigas. Teve a sua mãe, mas morreu cedo. Eu nunca me
importei de ser a sua amiga preferida, o seu desabafo.
As
gavetas da mesa-de-cabeceira, como as da cómoda e as do pechiché da mobília do
quarto dos papás sempre abriram mal, como se estivessem enferrujadas. Pareciam
ter sido feitas maiores do que as caixas que as recebiam, e emperravam se não fechassem
direitinhas e à primeira tentativa.
Desde
que mudaram de Lourenço Marques para a Matola, em 1971, até morrerem, em
Almada, os papás tiveram sempre a mesma
mobília de quarto em umbila escura que pouco se estragou com os anos. A certa altura
desencaixou-se o espelho do pechiché e o móvel passou solitário para o sótão. Servia
pouco. O papá usava-o para preencher os totobolas, escrever relatórios do
serviço. Aí se pousavam relógios, perfumes, medicamentos, e nas gavetas havia
peúgas e lenços de assoar.
A mobília
permaneceu em bom estado até ao fim, sendo que fim foi ter seguido para o
Alentejo, para uma casa no campo que a Guidinha lá tem. Imagino que esteja tudo
a ser útil e que muitos anos depois de eu passar para o o lado misterioso, os netos dos que
poderiam ter sido meus filhos, possam nascer na cama do quarto da Matola transferida
para o Alentejo.