Acordar



No momento em que compreendemos que o outro já não é igual, não foi o outro que mudou, fomos nós. É provável que o outro não tenha mudado uma nota, mas nós deixamos de estar sob encantamento. Acordámos. O despertar que nos permite olhar o outro como ele é e não como ele desejou ser visto ou nós quisemos vê-lo é um caminho sem volta.

Ao longo da vida muitas pessoas se cruzam connosco e permanecem ao nosso lado durante um tempo, ocupando um espaço que julgamos vazio. Não está. Nós estamos lá. Abrimos lugar para o outro, porque vivemos atravessados pela ideia de que somos intrinsecamente incompletos. A cultura universal construiu em nós essa ideia. No meu passado de filha única brinquei sozinha e nunca senti que me faltava uma companhia. Todas as minhas brincadeiras eram realizadas comigo e com as personagens da minha imaginação. Não havia uma culpa na solidão. Ela era natural. Era bom estar com outros meninos, mas não era imprescindível. Eu bastava-me.

Os seres são gregários porque precisam de sobreviver. O grupo apoia e protege, cobrando um custo que se paga em perda de liberdade e servilismo. Podemos substituir a última palavra por um eufemismo, mas em essência trata-se de anuir, colaborar, pactuar. Servir.

Gosto de observar os casais com muitos anos de vida em conjunto, que caminham colados, fazem as mesmas coisas, começando a ficar parecidos fisicamente. Existe uma osmose emocional que se reflete no físico. Consola vê-los juntos, satisfeitos, completos. Formaram ninhos que nunca desfizeram. Devem ter prescindido de pessoas e de vivências para os manter. Outros mantêm-se juntos-separados. Sente-se a secura, a distância, a frieza que ocupa esses ninhos de solidão acompanhada. Mas a estrutura permanece em pé até à morte de um deles. Penso que no segundo caso, o horizonte de felicidade na viuvez é naturalmente mais alargado. Não sei como se sobrevive à morte de um cônjuge-gêmeo, mas a de um junto-separado deve ser uma festa. Ou um castigo. Depende. Quem nunca conheceu a liberdade por vezes não sabe o que fazer com ela.

A relação com o outro é o espaço da fragilidade e da ferida. Aquilo que fazemos na existência está relacionado com o outro. Há uma fissura por onde permitimos que entrem. Ou não. Pela mesma fissura hão-de sair. Ou não. Mas essa fissura, a sua forma, densidade, comprimento e largura define a nossa identidade e tudo o que seremos e faremos ao longo da vida. Estamos cá por ela, para a cuidar.

 Ilustração: Prince Florimund finds the Sleeping Beauty - Project Gutenberg (retirado de: https://stringfixer.com/pt/Sleeping_Beauty)

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