Woody Allen e a classe alta



Meia-noite em Paris
(2011) e Blue Jasmine (2013) foram os dois filmes de Woody Allen que tive a sorte de ver na última semana para me alhear da realidade. Preciso de fuga para aguentar as horas em que tenho de estar acordada. 
Woody Allen é uma garantia de qualidade e de paz. Ao ver um Woody Allen tenho a certeza de que me é oferecida uma boa história, com um argumento inteligente, irónico, repleto de sentidos, um elenco maduro e sólido e uma direção clássica limpinha. Parecem filmezinhos caseiros, de baixo orçamento, o que é enganador se pensarmos que são rodados em cenário real, em Paris, no caso de Meia Noite em Paris, com elencos de luxo.

Um outro realizador que consegue um efeito parecido é Almodóvar. Ou Clint Eastwood. Mas Almodóvar e Eastwood são de uma intensidade mais expressiva. Há neles mais amargura, sofrimento, drama. Aquilo que em Allen é dilema, dúvida, inquietação íntima, nos restantes transforma-se em violência objetiva, a certa altura. Woody não gosta de violência. Gosta de Paris à chuva e de muros cobertos de rosas. Interessa-lhe o jogo de relações entre personagens, inter e intraclasses sociais, mas não pretende atingir-nos com um muro na cara.

As narrativas de Meia-noite em Paris e de Blue Jasmine tem pontos em comuns. Ambas se baseiam em personagens que não gostam da vida que têm e que escolhem transcendê-la através do sonho (no caso do argumentista Gil Pender em Meia Noite em Paris) ou do engano (no de Jasmine, em Blue Jasmine).

Os dois são filmes perfeitos. Gil é um argumentista americano que pretende escrever um grande romance. Em visita a Paris com a noiva, rapariga de classe alta, pouco interessada em livros, pragmática, normalíssima e deslumbrada com aparências, Gil bebe demais numa prova de vinhos e vai apanhar ar pelas ruas da cidade. Perde-se. Senta-se numa escadaria. Passa um calhambeque dos anos 20. Pára. Os ocupantes convidam-no a entrar. O calhambeque leva-o para outra realidade. Gil sairá dela, mas não igual. Quererá voltar todas as noites aos lugares onde se sente enraizado, que são os da vida artística e boémia parisiense de uma certa época, o que vai causar entraves à sua entrada na família na noiva rica, que não gosta do pé-rapado, embora ganhe bom dinheiro com os argumentos.

No caso de Blue Jasmine, interpretado por Cate Blanchett (Jasmine), talhada para papéis de rainha pela sua própria fisionomia, comecemos pelo nome. Jasmine começou como Jeanette, filha adotada. O nome próprio soou-lhe barato e transformou-o em Jasmine. Com o seu excelente aspeto esguio, o louro cinza, os maneirismos de classe alta e o nome aromatizado, Jasmine ascende ao seu objetivo: uma boa carreira no casamento. O marido é investidor. Faz manobras financeiras. Negociatas. Lavagens. Daí lhe vem a riqueza. Nunca vi Alec Baldwin num papel que lhe caísse tão bem. A certa altura, a relação sofre um desaire e o casamento de Jasmine desaba. Perde tudo. O filme inicia aí: quando tudo acaba e Jasmine está a caminho de São Francisco para ir viver com a irmã pobre, morena e baixinha, igualmente adotada, que ela sempre menosprezou. Viajou em primeira classe embora não tenha tostão. Não sabe viver de outra forma. A irmã trabalha numa mercearia. Tem dois filhos pouco requintados e um namorado italo-americano mecânico que corresponde ao estereótipo do italo-americano abrutalhado, contudo honesto e apaixonado. A incompatibilidade de Jasmine para viver como a irmã é insuperável. Jasmine é talhada a partir do perfil da namorada de Gil Pender, do filme anterior, que quer comprar uma cadeira parisiense por 20 mil dólares, porque são artigos difíceis de encontrar nos Estados Unidos. Jasmine não tem um sonho para mudar a sua vida, mas uma estratégia: encontrar um novo marido rico que queira mantê-la como objeto decorativo e comprar-lhe cadeiras caras ou jóias e levá-la para viver em Viena de Áustria. Mas voltar a subir na vida vai ser difícil para Jasmine.

O que interessa a Woody Allen está nisto: os pequenos dramas da classe alta americana, que ele conhece tão bem. Os pormenores: a forma como se vestem de bege e branco, as jóias, as marcas, as casas perfeitas, os jardins, as piscinas, os spas, o ténis, forma de falar em sociedade, de andar, de rir e sorrir. A validação de pares conseguida através dos sinais exteriores de riqueza. Como furar na vida. Como subir. É mestre na exposição destes jogos. Tudo bonito, tudo aparentemente sereno, tudo revestido por uma capa que pode estalar a qualquer momento. Vidas repletas de buracos sombrios, vazios que a qualquer momento engolirão as personagens, mas tudo continua, para o bem ou para o mal, sem uma moral. É assim, olhem, é assim. 

Os finais são abertos e podemos imaginar o que quisermos. Sem ficarmos estarrecidos. E nestes dias é tudo o que consigo ver.

Nota: Quem tem box de gravação da Vodafone deve ter Meia-Noite em Paris ainda disponível no gravador. Eu não gravei, apanhei na lista de filmes recentes


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